COLUNISTA TAMBÉM É GENTE
Não era um mendigo negro qualquer, não senhor! Ele havia estudado na Unicamp e sabia tocar violoncelo!
- por André Lux, crítico-spam
Era um belo dia ensolarado em São Paulo. Colunista da Folha de São Paulo (Robert Downey Jr.) dirigia-se para a sede do jornal para começar mais um dia de trabalho quando foi surpreendido por uma cena no mínimo exótica: um mendigo negro (Jamie Foxx) tocando violoncelo no meio da praça da República.
Num ímpeto instintivo, o Colunista parou o carro e foi até o artista insólito. Tentou conversar com ele, saber mais sobre sua vida, mas ouviu apenas um monte de frases desconexas. No meio daquilo tudo conseguiu descobrir o nome do sujeito e que ele havia estudado música na Unicamp.
Perplexo, o Colunista da Folha voltou para seu carro e, chegando ao jornal que publica suas opiniões, tentou descobrir mais sobre o mendigo negro que tocava violoncelo. Soube que ele tem uma irmã e que realmente estudou na Unicamp, embora tenha sido apenas dois anos antes de abandonar o curso misteriosamente.
O faro do Colunista, especialista em nutrir seus leitores pseudo-intelectuais de classe média com artigos atrativos e de fácil consumo, sentiu que tinha uma ótima oportunidade em mãos. Assim, ao invés de escrever ataques contra Lula, Evo Morales, Hugo Chávez ou qualquer outra coisa que cheirasse a esquerda progressista, o Colunista da Folha reservou seu espaço para falar do bizarro mendigo negro.
Mas não era um mendigo negro qualquer, não senhor! Ele havia estudado na Unicamp e sabia tocar violoncelo! O artigo, recheado de passagens edificantes e emocionantes, foi publicado em página nobre do jornal da “Ditabranda”.
No dia seguinte, o Colunista foi surpreendido com a reação que seu artigo provocou nos leitores. Uma enxurrada de mensagens elogiosas chegou à sua caixa de emails. O telefone não parava de tocar, todos querendo saber mais sobre o mendigo preto que tocava violoncelo.
Emocionada, Dona Lu Alckmin organizou uma vaquinha entre suas amigas frequentadoras da Daslu e conseguiu comprar um violoncelo novo para o andarilho. José Serra, então prefeito da cidade, tocado pelo texto da colunista, anunciou que liberaria mais verbas para atender à população carente.
Um outro membro do PSDB, que chorou ao ler o artigo da Folha, conseguiu um apartamento para alojar o mendigo negro que tocava violoncelo. Outro sugeriu que se agendasse um concerto dele em espaço nobre e que se convidassem várias personalidades importantes da alta roda da sociedade paulistana para o evento.
Todo feliz, o Colunista foi procurar o andarilho para contar-lhe as boas novas. Estranhamente, o mendigo não ficou nada animado com as novidades e começou a proferir frases sem sentido por vários minutos.
Novamente tocado pela loucura e pelo talento daquele mendigo negro que tocava violoncelo soberbamente, o Colunista escreveu mais uma coluna sobre o assunto, agora descrevendo sua experiência ao acompanhar o sujeito em suas andanças pelo centro da cidade, no meio daquela massa mal cheirosa que tanto apavorava os frequentadores do shopping Iguatemi. Mas valia o sacrifício para agradar seus leitores.
Os meses se passaram e o Colunista continuou acompanhando o mendigo e escrevendo sobre suas façanhas bizarras e exóticas no meio da gentalha.
O sucesso de suas colunas foi tão grande que logo um editor famoso, conhecido pelo seu prodigioso talento para descobrir obras que calariam fundo na alma da classe média apavorada e cheia de culpas, fez uma oferta milionária para publicar os artigos da colunista em forma de livro.
Quando atingiu as livrarias, foi um sucesso estrondoso. A revista Veja dedicou capa ao assunto e o livro ficou vários meses na lista dos mais vendidos. Não demorou muito para que a obra fosse comprada por um grande estúdio de cinema e transformada em um bonito e edificante drama que apresentava ao mundo a exótica história do violoncelista preto e mendigo que, por causa de sua doença mental, abandonou os estudos na prestigiosa Unicamp e virou andarilho.
Voluntarioso, o Colunista prometeu doar 1% de todos os seus lucros a uma instituição de caridade mantida por Dona Lu Alckmin. Orgulhoso de sua jornada insólita entre os membros da massa mal cheirosa, o Colunista da Folha de São Paulo percebeu que a experiência o transformou numa pessoa melhor, mais sensível e carinhosa, fator que reascendeu inclusive a chama da paixão em seu casamento com uma publicitária do PSDB.
Assim, depois de mais uma noite de sono tranquila e livre de culpas, o Colunista acordou renovado e pronto para escrever novos ataques contra Lula, Hugo Chávez, Evo Morales e qualquer outra coisa que cheirasse a esquerda progressista.
Cotação: *
Observação: O texto acima é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é uma mera coincidência.
5 comentários:
Que conto mais "sublime", André. Coisa linda mesmo. Depois de focar toda a sua doçura e generosidade com um caso particular, normalmente a nossa classe média faz isso mesmo: destina todo o seu ódio brutal contra o povo. E depois dorme o sonho dos justos, crente que está do lado do bem.
A transcrição da catarse americana para as ruas de São Paulo foi muito interessante.
É fácil perceber o quanto a própria sociedade americana procura esconder sua realidade com os clichês de Hollywood.
André de uma passadinha no meu blog e leia sobre seu mais novo desafeto, isso foi ele quem disse!!!
Genial, André!
Mas ainda assim acho que vou assistir!!! Afinal, não é toda hora que um filme "made in Hollywood" manda rencas de Beethoven às massas (cheirosas ou não)!
Abração!!!
Eu que pensei que só passaria no seu blog para "apropriar" a imagem de um mendigo e jornalista como ilustração do meu conto baseado em fatos reais...
Cara, amei o texto! Você nem imagina o quanto!
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