"Quem são esses animais noturnos que, travestidos de seres humanos, andam pelo mundo destruindo a vida de quem ousa amá-los, sem compaixão, empatia ou remorso?", questiona o diretor Tom Ford.
- por André Lux, crítico-spam
“Animais Noturnos” é um filme brutal, difícil de assistir, porém excepcional na forma como traduz em palavras e imagens a dor experimentada por alguém que teve sua vida destruída por uma pessoa na qual confiava cegamente e para a qual se entregou de corpo e alma.
"Quem são esses monstros que, travestidos de seres humanos, andam livremente pelo mundo destroçando a vida de quem ousa amá-los, sem qualquer traço de compaixão, empatia ou remorso?", questiona o diretor e roteirista Tom Ford.
Trata-se de um “filme dentro de um filme”, no qual a protagonista Susan (feita pela doce Amy Adams) recebe o manuscrito de um livro escrito pelo seu ex-marido Edward (Jake Gyllenhaal, perfeito com sua eterna cara de bom moço), que ela traiu e abandonou no momento em que ele estava mais fragilizado em troca de uma vida frívola ao lado de um homem arrogante e ambicioso, tudo que o outro não era.
Uma das cenas mais emblemáticas do filme se dá quando Susan vai jantar com sua mãe conservadora, racista, homofóbica e que é totalmente contra seu casamento com Edward, o qual ela julga “fraco e pobre”, fatores que, segundo ela, hoje encantam a filha, mas que com o tempo vão afastá-la dele. “Não sou como você, mãe”, responde a moça, recebendo como resposta a lapidar frase: “Não é agora, querida. Mas no final, todas nos tornamos iguais aos nossos pais”.
Embora rica e vivendo uma vida regada a festas e vernissages (ela e o marido são promotores de artes), Susan é infeliz, vazia e vê seu marido tornando-se cada vez mais frio e distante, ao ponto de nem tentar disfarçar mais que a trai regularmente com mulheres mais novas.
A mãe à filha: "Eu sou você, amanhã" |
Já o livro do ex-marido mostra uma família composta por um casal e sua filha viajando pelas estradas do Texas de noite. A uma certa altura, são abordados por caipiras bêbados liderados por um psicopata que acabam estuprando e matando as duas mulheres, deixando Edward para viver com a culpa e a dor de não ter tido forças para reagir e salvar a sua família (ele foi “fraco”). A investigação é comandada por um policial feito pelo Michael Shannon, o Zod do horrível “Homem de Aço”, que vai encontrando os criminosos um a um, sempre com a presença de Edward. No final, o protagonista mata os assassinos de sua família, mas acaba também morrendo no processo.
Ao mesmo tempo em que lê o livro angustiada, Susan vai relembrando de sua vida ao lado de Edward, da cumplicidade e do amor que sentiam um pelo outro e, principalmente, da maneira fria e calculista com que o abandonou, jogando nas costas dele todos os motivos pelo suposto fracasso da relação (ele é "fraco", humilha ela). Não bastasse isso, ela faz um aborto e mata o filho dos dois, já acompanhada e motivada pelo novo namorado.
Graças à leitura do livro e das memórias da vida anterior, Susan começa a se sentir humana novamente e marca um encontro com Edward em um restaurante chique, só para ficar horas esperando por ele, que não aparece. O filme termina com um close de sua face angustiada. Só ali, no final, é que ela se dá conta do que se tratava realmente a estória narrada no livro do ex-marido: ao abandoná-lo e tirar o filho dele, ela destruiu sua vida, o matou de certa forma, assim como fizeram os psicopatas no livro ao matarem a família do protagonista.
Assim, o livro de Edward era de certa forma uma catarse e também uma vingança, pois mostrava que no final das contas quem havia morrido era Susan, justamente por ter matado a única coisa realmente boa que teve na vida. E tudo isso em troca de frivolidades e da busca por prazeres mundanos totalmente desprovidos de humanidade e de sentido. O desespero demonstrado por Amy Adams na cena derradeira de “Animais Noturnos” é a constatação de que a protagonista havia, afinal, entendido que era ela quem estava morta em vida há muito tempo e não Edward, como ela e o atual marido costumavam debochar.
Infelizmente, esse tipo de “revelação” só acontece nos filmes, já que os “animais noturnos” como os descritos na obra são, com raríssimas exceções, incapazes de autocrítica e jamais entenderão ou mesmo se importarão com as vidas que destruíram em seu caminho rumo à conquista de suas ambições fugazes, sejam elas quais forem. Todavia, a arte permite às pessoas que passaram por esse tipo de experiência monstruosa que se expressem e se conectem com outros, promovendo ao menos algum tipo de reflexão e regozijo ao saber que não estão sozinhas. E ainda dá uma bofetada na cara dessa atual sociedade do consumo onde sensibilidade e fragilidade são cada vez mais rotuladas como fraqueza, principalmente nos homens.
“Animais Noturnos” é um daqueles filmes que vão passar em branco para a maioria das pessoas, até porque tem um final aberto e vai exigir um mínimo de inteligência do espectador para conectar os pontos e fechar o quadro maior, algo cada vez mais raro nos dias de hoje.
É um prato violento, angustiante e difícil de digerir, mas é uma experiência visceral que, de certa forma, ajuda a encarar monstros internos que só serão realmente derrotados quando forem entendidos e, acima de tudo, perdoados. Algo que eles jamais fariam a si mesmos caso tivessem algum tipo de consciência.
Cotação: * * * * *