Filme é extremamente bem realizado, repleto de nuances e inflexões narrativas que captam a rica essência da obra original, porém com voz própria na linguagem cinematográfica
- por André Lux
Sou grande admirador da saga “Duna”, criada pelo escritor Frank
Herbert a partir de 1965 e que influenciou diretamente um sem número de outros
produtos começando com “Star Wars”, passando por “Matrix” e até “Game of Thrones”,
a qual descobri a partir da adaptação feita por David Lynch para os cinemas em
1984. Versão essa que tinha inúmeros problemas e fracassou nas bilheterias,
porém possuía também qualidades, entre elas um elenco formidável, além de desenhos de produção, figurino e de criaturas sensacionais, sem falar da música
competente do grupo Toto (veja aqui minha análise das adaptações de "Duna" anteriores).
Confesso, portanto, que sempre tive grande dificuldade de
aceitar outra versão de “Duna” para as telas tão ligado que sempre fui ao filme
de 1984. Foi assim com a minissérie da Sci-Fi realizada no ano 2000 que embora
fosse muito mais fiel à obra original, foi feita com parcos recursos
financeiros e tinha um visual risível, parecendo muitas vezes desfile de escola
de samba.
Chega então a última adaptação do livro gigantesco de
Herbert, desta vez realizada por Dennis Villeneuve, cineasta brilhante que tem
feito ótimos filmes (meu favorito é de longe “A Chegada”), um verdadeiro artista
que, a exemplo do que foi Ridley Scott no passado, transforma cada fotograma em
verdadeiras obras de arte. E “Duna” não é diferente. O filme é um espetáculo deslumbrante
(e por isso exige ser visto ao menos uma vez nas telas dos cinemas), com
fotografia e efeitos visuais de tirar o fôlego sempre acompanhadas por um senso
de escala que impressiona. Os desenhos de produção e figurinos vão na direção
oposta do barroco colorido do longa de Lynch, apostando em linhas retas e
curvas sóbrias dignas da arquitetura contemporânea.
O mais interessante no meu caso é que não gostei muito do
filme na primeira vez que assisti (no Imax). Embora tenha achado o visual sensacional,
tive dificuldades em entrar na proposta da nova adaptação. Culpa disso
certamente foi o meu apego ao “Duna” de 1984 e também ao extenso conhecimento do
livro e suas tramas políticas complexas e intrincadas. Certamente se tivesse
escrito minha análise depois dessa primeira experiência ela seria
majoritariamente negativa. Mas senti que algo não estava correto e fui ver
novamente no cinema. E isso fez toda a diferença!
Já sabendo o que ia encontrar, fui capaz de me distanciar da
versão de Lynch e também do livro e finalmente consegui mergulhar de cabeça.
Nem mesmo a música do abominável Hans Zimmer me incomodou na segunda exibição.
Sim, a sua partitura para “Duna” sofre de quase todos os defeitos do resto do
seu trabalho: é intrusiva, simplória, pesada, opressiva e ensurdecedora! Porém,
me arrisco a dizer que mesmo assim essa provavelmente é sua melhor trilha pois,
a despeito dos problemas, possui alguns momentos inspirados e até impactantes (dentro
do baixo padrão Zimmer de qualidade, que fique claro).
O roteiro consegue sintetizar bem as grandes questões da
obra de Herbert sem entrar em muitos detalhes e excesso de informações, fatores
que deixaram o filme de 1984 incompreensível para quem não leu o livro. Apesar
de enfurecer os fãs mais puristas, foi uma decisão acertada que deu leveza e
permite um acompanhamento mais fácil por parte do espectador não familiarizado
com o material.
Gostei muito da maneira como Villeneuve se manteve fiel à lógica
do enredo original, no qual o conceito de “messias” e “escolhido” não passa de
maquinações engendradas pelas Bene Gesserit para facilitar a manipulação e
dominação dos povos dos mundos daquele universo, sempre ávidos por crenças religiosas
em seres sobrenaturais. Esse, por sinal, foi o erro mais grotesco da versão de 1984
já que transformou Paul em um messias real com poderes mágicos, algo que
arrebenta com toda a construção do livro.
Filme tem visual impressionante |
Algumas escolhas prejudicam o ritmo da trama, especialmente o
arco que envolve o traidor dos Atreides apresentado aqui de forma muito
apressada, culminando com o ataque dos Harkonnens que parece acontecer apenas poucos
dias após a chegada dos Atreides em Arrakis. O elenco é muito bom, embora
alguns personagens importantes tenham pouco tempo de tela, o que afeta a
composição dos atores, porém não enfraquece a narrativa principal que fica
focada mais em Paul e sua mãe Jessica (aqui bem mais emotiva e insegura do que
no livro).
O filme tem 2 horas e 35 minutos, mas parece menos, o que é
sempre um dos melhores elogios, terminando de forma abrupta no que seria o
início da segunda metade do livro e deixando um gosto de quero mais. O fato da continuação
ainda não ter sido confirmada pelo estúdio aumenta ainda mais a ansiedade pois,
diferente de “O Senhor dos Anéis” cujos três filmes foram filmados
simultaneamente, Villeneuve rodou apenas a primeira parte.
“Duna” é um prato requintado que vai agradar em cheio quem
procura ficção científica de qualidade e sabe apreciar um filme extremamente
bem realizado, repleto de nuances e inflexões narrativas que captam a rica essência
da obra original, principalmente as alegorias ao petróleo, ao cristianismo e islamismo e à ecologia, porém com voz própria dentro da linguagem cinematográfica.
Cotação: ****1/2