OS CEGOS DE DOGVILLE
Segundo ato intragável e pretensioso estraga o filme ao tentar nos ensinar que a raça humana não presta e que qualquer pessoa pode se transformar no mais cruel dos assassinos.
- por André Lux, crítico-spam
Achei bem decepcionante essa adaptação do badalado livro de José Saramago, “Ensaio Sobre a Cegueira”. Não li a obra original e procurei não saber nada sobre o enredo, exceto o básico. Pode ser que o livro seja realmente uma obra-prima como muitos dizem, mas o filme fica muito aquém das expectativas.
O que mais me incomodou foi todo o segundo ato, que se passa dentro de uma espécie de “campo de concentração” onde os afetados pela misteriosa doença são confinados. Primeiro porque a forma como isso é mostrado é ridícula.
Nenhum governo democrático faria algo parecido, simplesmente jogando dezenas de pessoas das mais diferentes classes sociais e deixando-as à própria sorte no que se torna uma verdadeira pocilga. E, pior, colocando guardas armados com ordens para matar qualquer um que sair da fila!
Isso até faria sentido numa situação extrema, quando quase todos já estivessem infectados e o próprio governo ficasse à beira do colapso, deixando os guardas sem direção. O problema é que o roteiro é muito apressado e não dá chance para que a gente se envolva realmente com a situação, muito menos com as pessoas que lá estão confinadas.
Tudo fica ainda mais grotesco quando a turma da ala 3, liderada pelo mexicano Gael Garcia Bernal em um inconvincente papel de “baixinho invocado”, começa a chantagear os outros, obrigando-os a pagar pela comida – a princípio com jóias e outros bens e depois com sexo.
Tudo é encenado de forma caricata e superficial, transformando o filme em uma patética e irritante disputa entre os bonzinhos e os vilões malvados. Em alguns momentos mais escabrosos achei que todos os personagens iam virar zumbis devoradores de cérebros, transformando o filme em um “A Volta dos Mortos Vivos" metido a besta!
Assim, o segundo ato de “Ensaio Sobre a Cegueira” vira uma espécie de os cegos de "Dogville", outro filme intragável e pretensioso que tinha a missão de nos ensinar que a raça humana não presta e que qualquer pessoa, dentro de uma situação específica, pode se transformar no mais cruel dos assassinos. Por sinal, esse é um tema extremamente batido e óbvio, que remonta a “O Senhor das Moscas” e afins.
Quem leu o livro disse que é assim mesmo no original, porém demora muito mais tempo para chegar ao ponto da loucura total. Imagino que Saramago não tenha cometido esse erro gritante e certamente deve ter dedicado páginas e páginas para humanizar os personagens, o que seria essencial para o clímax tornar-se verossímil.
Outro ponto baixo do filme é a insistência dos realizadores em desfocar a imagem e jogar luzes brancas na tela, para tentar imitar a sensação de cegueira dos personagens. No começa é um recurso até interessante, porém depois da enésima vez que usam torna-se redundante e cansativo.
Além disso, o elenco não tem maiores chances de brilhar e o ator que faz o oftalmologista, Mark Rufallo, é muito fraco. Sobra para a coitada da Juliane Moore tentar carregar o filme nas costas, sem sucesso. A trilha musical de Marco Guimarães também é muito ruim, intrusiva e fora de tom.
Mas nem tudo são pedras. Felizmente, o terceiro ato (quase) redime o segundo, embora seja mais curto. O final tocante consegue provocar alguma emoção genuína mesmo sendo abrupto e insatisfatório. Parece que o diretor Fernando Meireles, de “Cidade de Deus”, ficou melindrado com as críticas negativas que recebeu em Cannes e resolveu mexer na montagem, encurtando a narração em “off” feita pelo personagem de Danny Glover.
Só comparando as duas versões para julgar qual é a melhor, mas fiquei com a nítida impressão de que algo se perdeu nesse processo. Talvez a humanidade e o aprofundamento que o resto do filme tanto precisava.
Cotação: * *
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